sábado, 18 de setembro de 2010

Relato escola Santa Bárbara (19/08/2010)




Quinta-feira é o dia da coleta de lixo, alguns pontos do canal ficam críticos. Pensei com meus miolos, a centenário tem um canal. O Imbuí tem um canal. Todos dois foram reformados pelo governo: ganharam espaço de lazer, ciclovia, pista de Cooper, etc. A bate estaca também tem um canal! Será que devemos escrever ao nosso prefeito lembrando-o disso?

Enquanto desviava de alguns sacos de lixo, prestava atenção na conversa de dois rapazes a minha frente, falavam sobre um assassinato que ocorrera na noite anterior:

- “Rapaaaaaz, foi mais de trinta tiro, sacana!!”

- “E acharam quem matou?”

- “Que nada, tá fugido. Mas tá com cara de encomenda, dívida de droga.”

...

Perto da escola o movimento é grande. As crianças esperam na rua, algumas acompanhadas pelas mães. Brincam enquanto esperam abrir o portão da escola. Correm umas atrás das outras gritando “pá, pá!”, imitando um revolver. Outro dia Maurício me contou que muitas das crianças da comunidade se envolvem com o tráfico de drogas muito cedo, isso quando os traficantes não são seus pais. Como sempre, o governo não se lembra das crianças, só do voto dos pais das crianças da Av. Centenário e do Imbuí. Mas os traficantes lembram. Realmente lamentável.

Aproveito que uma das professoras está chegando e entro na escola com ela. Um silêncio absurdo! Sento-me perto do portão e aproveito pra começar a escrever sobre o que presenciei há pouco.

Abrem os portões! É gritaria, mochila voando, bola, figurinhas de artistas e de futebol, um grupinho já se ajeita pra brincar de gude, jogos com palmas, uma algazarra. Os professores regentes de classe chegam juntos ao pátio, rapidamente os alunos entram nas filas e aguardam. Silêncio. O Professor Jorge começa: “1, 2, 3... Em nome do pai, do filho e do espírito santo...”. Eles rezam o pai-nosso, ave-maria e até o santo anjo do senhor! Fico pasma. A aura de algazarra fica para trás e uma por uma as filas vão seguindo para as respectivas salas. A questão da religião sempre rende muito pano pra manga, principalmente quando falamos de uma escola laica. Por hora não gostaria de emitir opinião sobre a necessidade e influência da prece no inicio das aulas, mas, uma coisa é fato: a esperança move montanhas. Às vezes é bom imaginar que existe alguém maior que realmente se importa conosco. Entre o prefeito e o traficante, Santa Bárbara.

No 1º ano Maurício nota a moleza dos alunos, começamos a aula com a música da preguiça. É cantada pela maioria, e sem gritos! O professor aproveita a concentração para brincar com a dinâmica da música. Mãos pra cima, cantam forte, em baixo, piano. Confesso que até eu me empolguei!Quando percebi já estava cantando “Saaaaai preguiça!!!” igual aos pequenos. Percebendo que nem todos participam, ele muda de estratégia. Pede para que fiquem em pé ao lado da carteira, e, durante o “Tictictictictictictá” (que é um momento levemente suspenso da música) jogam “morto-vivo”, quando Maurício toca mais forte o violão eles levantam e vice-versa. Cantam novamente a música, bem lentamente e, repetem uma ultima vez no andamento normal. Maurício entrega um par de Claves para cada fila e explica que eles terão que imitar o que o primeiro da fila fizer. Agora toda sala está compenetrada na competição! Para aumentar o ar de desafio, Maurício conta no quadro os pontos de cada fileira. É engraçado quando trabalhamos com as claves, todos eles conhecem as regras, mas vez ou outra acabam percutindo a mesa ou o colega. O professor é claro, chama atenção e quando necessário retira as claves do “aluno-indiciplinado”. Mas sempre dá uma segunda chance. Mais do que ensinar ritmos ou conceitos, ensina atitudes a se seguir. O exemplo é sempre o caminho mais efetivo para o aprendizado. Cantamos agora a música “dó, ré, mi”, o professor aproveita para fazê-los escrever o nome das notas no quadro. Ele desenha uma escada com três degraus, coloca o nome de duas notas (ou as duas primeiras ou a primeira e a ultima...) e pede que completem a terceira. Muitos realizam plenamente a tarefa, mesmo sem nunca terem escrito tais notas. Nesse dia ganhei um barquinho e um bilhete, os alunos adoram fazer agrados, e perguntas! Fiquei tão entretida, que nem vi quando começou, mas em menos de 10 segundos uma aluna agarrou a outra pelos cabelos, jogou-a no chão e foi pra cima! BRIGA! O professor separa rapidamente e leva as duas para a diretoria (uma delas geme de dor). Maurício explica que eram muito amigas um ano antes, mas que depois que chegaram alunas novas a relação mudou. Imagino que elas aprendem em casa que resolver problemas de convívio é partir pra agressão, não pareciam duas crianças brigando e sim duas mulheres. Mais uma vez, o exemplo é sempre o caminho mais efetivo para o aprendizado.

No 3º C, Maurício pede para Géssica e eu prepararmos a sala para o jogo com copos, enquanto ele resolve o problema das meninas brigonas. Não encontramos grandes dificuldades. Formamos a roda e conversamos com as crianças enquanto ele não chega. Começamos o jogo com apenas um copo, depois de perceber a prontidão plena, distribuímos os outros. A distribuição dos copos acontece de forma que o copo passe por todos os alunos da roda, um por um, exercitam o compartilhar. Depois que recebem os copos, começam a percuti-los no chão enlouquecidamente. Géssica e eu tentamos “reger” um silêncio, ou tentar chamar a atenção deles. Maurício ri! E aguarda pacientemente até que se cansem. Terminado o pandemônio fazemos a brincadeira completa com a turma, eles riem e se divertem. Cada um no seu ritmo vai percebendo o próprio erro. Alguns demoram mais, mas chegamos a um bom resultado final. Para atiçar a vontade deles pela próxima aula, jogamos nós três, desta vez acelerando. Eu, pra variar, sou a primeira a errar, fazer o quê? Azar no jogo...

No 3º D a brincadeira fica um pouco diferente, primeiro exemplificamos o jogo em cima da mesa do professor, com apenas um copo. Convocamos os meninos a experimentarem primeiro. Um copo, depois um para cada. Depois as meninas. Muitos desempenham a atividade com segurança, mas o ritmo de aprendizagem é inferior ao 3º C. Não fizemos a brincadeira completa mas, de fato, houve menos agitação e indisciplina que na outra turma. Penso que talvez seja pelas características do regente de classe.

No 2º ano começamos cantando “dó, re, mi”, depois “Da Maré” e depois “Leitinho”. Eles acabam de chegar da educação física, de certa forma as músicas (nessa ordem) ajudam a desacelerar e concentrar mais na aula. A próxima atividade é com as Claves, novamente um par para cada fila. Pontos no quadro e clima de competição. Uma fila erra, Maurício dá uma segunda chance e, como o que fizer para um, tem que fazer para todos: todos têm uma segunda chance, todos acertam suas imitações, todos voltam felizes para casa. Todos, inclusive nós. Maurício, que apesar do desgaste e do cansaço não esconde a satisfação do trabalho cumprido. Géssica e eu, com nossos desenhos e bilhetes cheios de carinho. Fim de aula.

2 comentários:

  1. Excelente descrição, Ana!
    Deu para visualizar perfeitamente as aulas ... o que aconteceu, as reações e naturalmente a sua pessoa no meio disso tudo!

    parabéns!

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