sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Opereta do Boi Bumbá




Manhã de quarta. Nem sol, nem cinza – sem chuva. O cavaco na mochila, a mochila num dos ombros; o contrabaixo, em contraponto, no ombro oposto, fazia o equilíbrio de não deixar a coluna muito desconjuntada; cheguei na escola atrasado. A escola – entre barro e mata, rente a zoológico de bicho e gente: pura calmaria de formigueiro: gente pra cá, gente pra lá, mas com alma de gafanhoto: tudo focado em música. Encontro amigos e amigas, vários deles e delas: os parceiros, cumpadres de caminhada; e os novos: as crianças, professoras, empregados da casa. Vai atabaque, vai surdão, pandeiro e caxixi de um lado pro outro; buscam a sala mais certa. “Essa não, não tem tomada; pode aquela?”, e vamos nós. Pluga cabo, liga caixa, passo o baixo, afino o cavaco. Cá, Sapoti, Joabe, Fábio e um bando de alunos com baquetas nas mãos tão comigo; lá, noutra sala, Nara, Shawan, Eduardo, Raphael e outro sem número de alunos e suas vozes e suas manhas.

E Nara fala alto, puxa um, chama atenção do outro – é preciso ensaiar, deixar o boi bonito, nos conformes; mas ela canta também, e os pequenos com ela, abrem a voz, raiam a barra do dia. E Nara se veste de Catirina; e Catirina quer comer língua de boi – está grávida: ou come ou filho nasce com cara de boi. Eduardo se veste de Brandão, seu marido; Brandão na encruzilhada: é preciso atender ao desejo da grávida.

Cá, nossa sala, ouvimos os tambores dos meninos. Tocam bem, tocam alto. “Calma, calma”, pede Fábio. Dá sermão, pede atenção. Um olha, des-olha, ouve, des-ouve. Sapoti propõe a regra: “quem não souber beber silêncio sai da roda”. E os batuques vão virando música, pouco a pouco. Joabe no violão, eu e meu cavaco, Fábio toca o baixo; Sapoti é o regente: chama uma, duas, três canções. E a música acontecendo, brotando das mãos dos meninos.

“Ê, que vaqueiro malvado!” Lá, Brandão mata o boi pra satisfazer o desejo da mulher. A história se complica: o fazendeiro, vulgo Raphael, não gosta de ver seu boi morto. O novelo da estória vai se desenrolando: algumas crianças o seguem com os olhos; outras a cantam. Mas tem quem nem canta, nem segue. Por quê? “Ah, tio, a barriga ronca!” “Já já a gente a alimenta, calma.” Chama atenção daqui, chama atenção de lá; “vamos, a estória precisa acontecer!”

Cá, passa uma, passa outra – “falta qual?”. É preciso correr, logo, logo cá e lá se juntarão: os personagens e as vozes e os tambores e as cordas deverão somar-se, tornar-se um. “Faltam 10 minutos!”, avisa Sapoti. “Ei, Marquinho, tu tá demais!”,  exclama Joabe. O menino toca, olha o chão – seus ouvidos parecem tapados com algodão (se fosse com nuvens, quiçá, o garoto era mais sorriso). Ranzinza, quer tocar, e o mais alto que puder – talvez quisesse ser ouvido até pelos animais do zoológico próximo! – e toca: toca o que ninguém entende e aquela é sua voz – rouca, ruidosa; e fala com ela, ferozmente, inteligivelmente; ninguém entende. Fábio conversa, eu converso; Marquinho, mais se cala, e sorri de quando em quando – a revolta fica meio opaca. “Toda vez que tua mão bater fora do tempo, tu leva cosquinha”, digo; ele ri. Joabe, já com o ouvido colado no violão nos dá as harmonias: “é em dó maior!” 1, 2, 3 e... Sapoti comanda, a música soa. “Pronto, próxima!” Mas acabou o tempo: é hora de ir ter com o tal do boi.

Lá e cá enfim se juntarão; amplificadores, caixa, pandeiros, tambores, agogô, violão, baixo e cavaquinho nos braços – vamos pra outra sala. Ajeita aqui, ajeita acolá – “pode começar?”. Menino pede cavaquinho, menino pede baixo, menino levanta. “Calma, calma, senta lá”  - “pode começar?”. E vem professora: fala com um, fala mais alto, grita com outro. São quantas? 30, 40, 50 crianças? “Vai começar!”

E começa: o ensaio se abre: primeira cena. Entra a música: meninos e meninas cantam, percussão soa. Shawan documenta tudo: eu no cavaco, Fábio botando o baixo, Joabe e o violão; Sapoti ajudando na narração e guiando os tambores, Raphael sendo o fazendeiro, Eduardo, de Brandão, matando o boi e dando a mulher, Catirina, que quem veste é Nara; as crianças todas, tocando, cantando, umas emburradas – tinha até uma com a fantasia da burrinha, mas essa sorrindo –, outras atentas – todos nós desenrolando o novelo da estória daquele boi (de que um menino meio tímido se disfarçava). Brandão, Catirina, a língua do boi, o patrão danado, o veterinário atestando a morte do boi, a aparição da índia, o feitiço vindo, o boi levantando: é festa! As professoras do lado de fora e de dentro, olhos atentos, observam as crianças. Nara agradece – “mas podia ter sido melhor”, diz, olhando pros meninos mais danados. Inverto a fala: "podia ser melhor, mas foi muito bom"!

Aconteceu: é fim da manhã. Nem sol, nem cinza – sem chuva. “Como vocês conseguiram?”, pergunta a diretora. Quem sabe? De vez em quando a escola não é lugar onde feitiço acontece? Então, vai ver foi a índia da estória...


Livera.

(P.S.: Quem se atreveu a prolongar o conto ainda pôde encher o bucho; salada, frango e um arroz que, como bem atestou a cozinheira que o fez – humilde, mas sem papas na língua – tava “divino”. E tava mesmo.)

2 comentários:

  1. belo, mui belo. Um dia comum, regado pela poesia, vira um conto bonito de ler, ouvir e contar.

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  2. Zé!!! Lindo conto!! Quero ler mais! Parabéns! Isso poderia ir para o livro que Joabe tá organizando. Um abraço!

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