quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Relato escola Santa Bárbara (21/10/2010)

Após dias tumultuados, festivos e cheios de grandes emoções. Mais uma quinta-feira que parecia beirar a normalidade. Cheguei à escola meia hora antes do horário de entrada dos alunos. Acompanhei a oração inicial e a entrada dos mesmos em sala de aula. Maurício de longe me viu e esboçou uma risadinha, apesar do ar meio esbaforido:
– Hoje o 4º ano vai fazer uma apresentação no SESI Caminho de Areia!
– Legal! – respondi.
– Ás 14h30min chega o ônibus que vai nos levar, vamos apresentar a música bolacha de água e sal do Palavra Cantada, conhece?
– Que massa Maurício! Não conheço, não.
– É legal, você vai ouvir. Metade da turma faz um jogo com copos e mãos e a outra canta a música, tem um momento contrastante onde todos estalam os dedos e depois volta pro groove.
– BAAAALAA!
– Então, ainda tenho que resolver isso do ônibus procurar o motorista e coisa e tal. Você pode dar aula no 1º ano hoje?
– CLAAAAR...Hã?! Sozinha? Eu e eles?
– É, é bem simples, vamos continuar aquele jogo de “Fino/ Agudo, Grosso/Grave, Curto e Longo”. Leva o teclado e o amplificador para a sala, divide a turma em duplas e pede para virem ao quadro. Escreve num papel o som que eles devem fazer (curto, longo, agudo, grave), enquanto um lê o papel e toca o outro desenha o gráfico do som que o primeiro fez. OK?
– Claro, vamos nessa!

Quando estamos planejando uma atividade para sala, tudo parece fácil e fluido, no entanto, no momento da execução é que vemos as brechas, os pontos positivos e negativos, o que funciona e não funciona e, principalmente, que educador é você e que tipo gostaria de ser.
Maurício solicitou a uma professora permanecer em sala de aula para organizar a turma. Passados dez minutos do começo da aula, Romildo (Maurício, o nome dele é Romildo ou Romilson?!) adentra a sala. Romildo/son é aluno de Licenciatura da Católica, veio observar a classe.
Resolvi só trabalhar o som curto e longo com os alunos, escrevi em quatro papéis quatro sons diferentes. A dupla chegava ao quadro e sorteava um papel para realizar. De todos os alunos em sala apenas um realmente sabia ler, ajudei-os a lerem os cartões, o que demandava mais tempo e mais atenção. As primeiras três duplas realizaram a atividade sem grandes problemas. Toda minha “performance” era bem teatral, para tornar a aula mais engraçada e prender a atenção deles, difícil mesmo era fazer com que todos me ouvissem, silêncio é um artigo em extinção. A quarta dupla (de um total de quinze) tropeçou no fio do teclado, consegui salvá-lo da queda, mas a morte foi inevitável, do teclado é claro. Resolvi continuar a atividade utilizando a voz. Alguns ficaram confusos então solicitei toda sala para que primeiro realizássemos sons curtos. Vários “pi, pá, pu, tchan, úú” surgiram de todos os cantos, depois sons longos, resultado: Aproximadamente dois minutos de gritos ininterruptos. 

A essa altura já sentia desconforto ao falar. É muito desgastante falar gritando o tempo todo e, se essa experiência evidenciou algo foi: Gritos não fazem e não poderão fazer parte da minha prática pedagógica. Mesmo que falem que ao longo dos anos ganharei prática na famosa “impostação vocal”. Não tenho estrutura e nem vontade de utilizar esse artifício em sala de aula. Admiro muito professores-com-voz-de-trovão, mas não é para mim! Com certeza é mais difícil (e quem disse que EDUCAR é fácil?!) e leva mais tempo, mas o desgaste físico/mental/psicológico é bem menor! Voltando ao relato, pedi um som longo à classe do 1º ano, gritaria-sem-fim que só cessou quando a outra professora apagou as luzes. Todos AUTOMATICAMENTE abaixaram as cabeças e calaram-se (Salve, Behaviorismo!), neste momento percebi que só havia uma professora em sala e, infelizmente, não era eu. Continuamos o jogo, poucos conseguiam ouvir a voz do colega que realizava a atividade e, com o passar do tempo, nem toda a “encenação” conseguia mantê-los conectados a brincadeira. 
Os poucos que estavam atentos DECORARAM os papéis, fiquei feliz porque pude observar o quanto são espertos e ligeiros quando querem, mas o jogo realmente perdeu a graça. Corri para secretaria/sala do professores e peguei o violão: “A, agora eu faço o som e vocês desenham no quadro!”. Dei outro piloto para dupla e continuamos a atividade até o fim. Percebi que muitos ainda não entendiam o porquê do som ser curto ou longo. Enquanto pensava em como finalizar a aula perguntei-lhes: “Por que chamamos um som de curto?”. Várias respostas: “porque é pequeno, porque é rápido...” um disse: “Porque é agudo!”, mas imediatamente foi corrigido por um colega, que respondeu: “pode ser grosso e curto”. 
Aproveitei a deixa: “vamos todos fazer um som grave e curto?!” Vários “tos, pós, pum”. Ainda matutava um fim-de-aula interessante e coeso, mas nada vinha a mente (Aiaiai Plano de Aula, que falta você faz!). Perguntei “E por que chamamos um som de longo?”, outras tantas respostas: “porque é grande, por que demora...”. Eu: “então vou contar até três e vamos todos fazer um som longo para finalizar a aula: 1,2 e 3...”. “CALA A BOCA DE UMA VEZ”, respondeu uma parte da turma, enquanto a outra parte simplesmente me ignorava. Insisti na brincadeira: “Vamos lá pessoal! Vocês sabem o que é um som longo, é só fazer!” Bom, não posso dizer que o resultado não foi satisfatório, mas, para o que parecia uma tarde beirando a normalidade, quase me deixa louca (ou ao menos um pouco mais surda). 
Gritaram, gritaram, gritaram e eu que já não tinha forças, nada fiz. Esperei a professora apagar as luzes novamente, arrumei as coisas em cima da mesa e levei para a sala dos professores, ainda gritavam quando saí da sala carregado o violão e o amplificador. Quando voltei à sala para buscar o teclado todos estavam quietos de cabeças baixas, Insight! Comecei a cantar DA MARÉ bem baixinho, aos poucos foram me acompanhando, começaram a aumentar o tom de voz, “regi” a turma para que continuassem cantando baixinho. Botei o teclado embaixo do braço e disse: “Muito bonito, crianças! Até semana que vem”. Eles quase em coro: “Tchaaaau Próóó!!”, a ultima voz que ouvi foi a da outra professora que comentava com o Romilson/do : “Coitada da professora!”. Esse “coitada” doeu mais do que toda indiferença dos alunos desatentos.
Tomei um copo d’água, respirei fundo e fiquei esperando Maurício na sala dos professores. Ele já chegou perguntando “E aí?! Como foi?!”. “É, foi! Mas primeiro tenho que digerir a experiência para depois te passar os detalhes” – respondi.

No pátio, já havia uma fila de alunos formada, sorrisos estampados e pouco nervosismo aparente, de imediato quase todos me reconheceram como a DJ da festa. Alguns se esqueceram do bilhete de permissão dos pais, e pediam encarecidamente para que Maurício e a Vice-Diretora lhes permitissem o passeio. Uma das alunas correu até sua casa (que era próxima a escola) debaixo de chuva, só para pegar a autorização. 
Dentro do ônibus a turma se dividiu em duas: a galera do fundão, que cantava e brincava bastante e o pessoal da frente, que parecia mais tímido e ansioso. Maurício ficou ao lado do motorista mostrando o caminho e eu fui atrás com a galera. Tirando um ou outro pedido de “Por favor: mãos, pés, cabeça, joelho, cotovelo e nariz DENTRO DO ÔNIBUS”, não me deram trabalho algum! Uma turma madura e disciplinada, no limite onde toda criança o pode ser. Chegamos ao SESI no horário combinado, bem a tempo de ver o começo das apresentações, os alunos acomodaram-se na platéia e lá ficaram muito bem comportados. 
Uma das alunas me disse que não poderia ficar no auditório, pois passava muito mal com o ar condicionado. “OK, então a gente fica sentadinha aqui até a hora da apresentação de vocês”. Outra aluna agarrou meu braço e disse que estava sem autorização dos pais, então iria ficar perto de mim. Ficamos as três conversando na ante-sala do auditório. Foi divertidíssimo! Parecia um programa de entrevista: quando não estavam respondendo, estavam curiosíssimas perguntando. De longe parecem crianças, mas me surpreenderam com a maturidade de suas palavras. 
Quando perguntei sobre as diferenças entre escola pública e escola particular elas foram veementes: “A escola particular é um saco, um monte de metidinho que se acha e que diz que sabe de tudo, mas não sabe nada. Os pais pagam caro e pensam que dinheiro compra conhecimento, mais burros ainda, por que não sabem que depende é do aluno, o aluno é que aprende, se quiser aprender alguma coisa, é claro. Na escola particular eles aprendem é a esnobar com o tênis caro, tirar onda com o celular novo, só isso... nada que preste”. Não preciso nem dizer que o relato sobre a escola pública e, mais precisamente a Santa Bárbara foi tão enfático quanto, mas inversamente proporcional. Elas ADORAM a escola, os amigos, os professores, a merenda, sentem mesmo como se fosse uma extensão das suas casas, uma segunda família. Perguntei-lhes o que elas gostariam ser quando crescer, prontamente a primeira disse: “promotora de justiça” e a segunda, “Artista! Quero desenhar, fazer quadros, esculturas”. Fiquei feliz e surpresa com as respostas e disse-lhes:
– Meninas vocês tem o poder de ser tudo que quiserem, mas terão que estudar muito e trabalhar duro.
– É, tô ligada!

Chegada a hora da apresentação, alguns aparentavam muito nervosismo. Posicionaram-se e aguardaram concentrados a regência de Maurício. Foi lindo! A galera dos copos não errou uma, mesmo desfalcados – a mocinha que passava mal com o ar condicionado não aguentou ficar no auditório. Inicialmente começaram a cantar tímidos, os ombros para dentro e a cabeça levemente baixa. Depois da parte contrastante, onde a dinâmica diminui, voltaram com todo gás. Realmente uma apresentação muito bonita. 
Na platéia aplaudiam bem felizes as “chefonas” (com o perdão da palavra, é claro. Não me recordo agora nem os nomes nem os cargos, mas Maurício pode comentar isso depois, né?) Também marcava presença o pessoal da comunidade, que não se preocupava muito em regras de convívio social, como fazer silêncio ou mesmo, não jogar bolinhas de papel. Na saída, lanchinho para todos! Voltamos para o ônibus, todos alunos, mais uma vez, muito comportados. Já no ônibus, não havia dois grupos, todos estavam no fundo cantando e batucando, felizes com a apresentação (Salve, Adrenalina!). Chegada tranqüila, na escola o transporte escolar de uma das alunas já havia passado, provavelmente ela se esqueceu de avisar-lhes da apresentação. Mauricio a levou em casa e a mim também. Durante o trajeto:
– E aí?! O quê que você achou? Como foi a aula? E o 4º ano?!
– Calma Maurício! Vou digerir e prometo que escrevo TUDO.

3 comentários:

  1. Digeriu bem, ehh, Ana??
    Como sempre, um ótimo relato.

    Pessoal ... o que gostaria de chamar a atenção através desta descrição são justamente as falas, as reações dos alunos que em geral são sempre pouco mencionadas.
    Percebam a riqueza de informações ... por exemplo, o papo com as alunas sobre a escola particular: reparem como se tornam evidentes vários aspectos da mentalidade e da forma de vida delas, como elas lêem o mundo.
    Todos ingredientes necessários para saber com quem estamos lidando, quem são estes alunos, o que eles pensam a respeito de "xyz" ...

    Outro aspecto é sentir na pele a necessidade do planejamento e do querido plano de aula.

    Maurício, sei que vc conversa muito com seu grupo, mas acho que nesta fase ainda seja necessária uma comunicação maior para que o pessoal chegue mais preparado/planejado para as horas em que vc precisa estar resolvendo outras coisas. Nada de trágico, não me entenda mal, só buscando ter um trabalho mais afinado e cada dia melhor!
    E parabéns pela apresentação ... teria gostado muito de estar presente, se vc tivesse avisado!!

    ResponderExcluir
  2. Bem, Ana sinceramente chorei agora lendo e lembrando do dia, mas vamos lá.

    Como Flávia disse, esse acesso à visão do aluno é realmente necessária para que possamos com o passar do tempo, adquirir uma percepção mais aguçada.

    Quanto a falta de comunicação especificamente, o que aconteceu foi algo inesperado, eu mesmo iria dar aula, mas quando cheguei na escola tinham me dito que o ônibus que estava marcado pra chegar às 15:30, chegou 12:50, e ai ja víu né??, como a primeira aula da quinta a tarde começa às 13:30 foi impossível realizar isso.

    Mesmo assim, gostei da forma que Ana utilizou para superar as dificuldades e da percepção que vem crescendo da necessidade de um instrumento de orientação para a aula.

    O pessoal da CRE que estava na apresentação foram 4, dois coordenadores técnico- Pedagógicos Zete e Rosalvo, 1 professora de Artes visuais da Rede Krica, que estava na organização da 2ª Mostra de Arte e Cultura de Itapagipe e a coordenadora da CRE cidade Baixa
    (a chefona depois do secretário) Prof- Helenita.

    Peço desculpas por não ter avisado, falhei realmente isso não acontecerá mais.

    ResponderExcluir
  3. Tranquilidade, Maurício ... como em vários outros momentos vc me contou que vc deixava as coisas para acontecer na hora ... pensei que isso foi seguindo a mesma lógica e não um imprevisto de percurso.
    Daí, desculpa por não ter entendido a situação ... :)

    ResponderExcluir